segunda-feira, 24 de outubro de 2011

tirado da revista Marie Claire


“Como superei um estupro''
Depoimento a Fernanda Dannemann 




Faz seis anos que a estudante universitária Lúcia*, de 28 anos, foi estuprada a poucas quadras de sua casa, em um bairro tranqüilo de Juiz de Fora (MG). Mesmo abalada, resolveu denunciar o criminoso. Passou pela via-sacra de delegacias e exames de corpo de delito, e durante um ano conviveu com a possibilidade de ter contraído o vírus HIV. Hoje, consegue falar do assunto sem mágoas e conta como recuperou a alegria depois do trauma.
Na manhã de 10 de novembro de 1999, acordei assustada depois de um pesadelo. Sonhei que estava numa praia, mas pisava em cacos de vidro em vez de areia. Meus pés sangravam e eu não conseguia sair dali. Na época, eu tinha 22 anos e era recepcionista de uma emissora de TV. Estava chovendo, fui trabalhar agoniada. À noite fui para a faculdade, onde cursava o terceiro ano de letras.
Naquela noite a aula acabou mais tarde. Quando cheguei ao ponto de ônibus, às 22h30, o ônibus que me deixaria na porta de casa já havia passado. Peguei outro que, por volta das 23h, me deixou numa rua paralela à minha. Caía uma chuvinha, a rua estava deserta. Quase na esquina de casa, notei duas pessoas atrás de mim. Alguém agarrou meu pescoço por trás, perdi o fôlego, caí e fui arrastada até um terreno cheio de mato. Imaginei que era um assalto.
No meio do mato, vi que eram dois rapazes, embora não enxergasse bem no escuro. Um deles estava armado. Enquanto o outro procurava minha bolsa, usando um isqueiro como lanterna, o que estava armado forçava o meu rosto contra o chão. Eles cheiravam a álcool, senti que algo de muito ruim ia me acontecer. Acho que tive uma descarga de adrenalina tão grande que fiquei em estado de choque. Não chorei nem tentei fugir.

O rapaz armado me disse: 'Tire a calça e a calcinha'. Paralisada, tentei olhar o rosto dele. Ele disse: 'Não olha pra mim ou te mato!'. Tirei a roupa, ele abriu minhas pernas com violência, forçando meu rosto contra a lama. Ainda ouvi o outro dizer: 'Não faz isso'. Depois ficou quieto. Eu não conseguia me mexer nem respirar direito, porque tinha barro no meu rosto. Ele ficou me agarrando e introduziu o pênis com força. Ainda falou no meu ouvido: 'Você vai ficar traumatizada pelo resto da vida'. Pedi pelo amor de Deus que não fizesse aquilo, ele disse: 'Não acredito em Deus, moça'.
Quando ele saiu de cima de mim, consegui encará-lo. Era jovem, magro, tinha o cabelo curto e uma cicatriz vertical na bochecha direita. Meu olhar foi de tanto ódio que ele me deu um soco no olho, gritando: 'Não me olhe assim!'. Sentei na lama, nua, de cabeça baixa. O outro rapaz continuava ali, mexendo nas minhas coisas. Pensei na minha mãe, que devia estar preocupada com meu atraso. Comecei a rezar e consegui, com calma, conversar com aquela pessoa transtornada. Inventei que tinha um filho de 2 anos, ele quis saber onde eu trabalhava. Manejando a arma, ele alternava uma personalidade agressiva com outra, amável e civilizada. Nua, na chuva, eu não sentia frio ou dor. Só queria fugir dali.
De repente, o outro rapaz perguntou: 'O que a gente faz com ela?'. Ele respondeu: 'Mata!'. Eu me surpreendi, mas não achei que ia morrer. O estuprador se acalmou, começou a mexer na minha carteira. Perguntei se podia me vestir. Ele disse que sim, mas pegou minha mão esquerda e quebrou meu dedo anular. Fez isso sem mais nem menos, por pura maldade. Não senti nada. Depois perguntou, com voz doce: 'Moça, quer que eu ajude a se vestir?'. Fiz que 'não' com a cabeça. Juntei minhas coisas e caminhei devagar em direção oposta à minha casa. De novo agressivo, ele gritou: 'Se olhar pra trás, eu meto bala!'.
Dei a volta no quarteirão, sem olhar para trás. Em casa, esmurrei a porta. Minha mãe abriu e eu me joguei em cima dela, aos prantos. Ao me ver toda suja, machucada, meu pai desmaiou no sofá. Enquanto minha irmã o socorria, minha mãe perguntou: 'O que fizeram com você, minha filha?'. Ao ouvir a voz dela, comecei a sentir todas as dores. O dedo doía, o pescoço, o corpo todo. Mas a dor maior era interior, uma dor que só quem passou por isso pode entender. Corri para o banheiro e, no chuveiro, tentei me livrar daquela sujeira no corpo e na alma. Tomei minha pílula anticoncepcional e senti um alívio ao pensar que, grávida, aquele animal não me deixaria.
Era quase 1h da manhã quando saí do banheiro. Minha mãe já tinha ligado para a polícia e para o Bruno*, meu namorado há sete anos, que me esperava na sala. Eu disse aos policiais que tinha sido assaltada. Ao me verem machucada e de banho tomado, eles perguntaram se era só um assalto mesmo. Insisti que sim. Omiti o estupro por vergonha e por pena dos meus pais.
Depois o Bruno me levou ao pronto-socorro. No carro, comecei a chorar. Não precisei falar nada. Ele só perguntou se eu tinha sido estuprada pelos dois. 'Sou seu companheiro e estou com você para o que der e vier', disse. Esse momento me marcou e me ajudou muito porque me senti totalmente amada e protegida. Depois de colocar uma tala no dedo, voltei para casa, mas não consegui dormir. Na madrugada, veio o sentimento de culpa, como se eu fosse responsável por tudo, por ter andado sozinha à noite.
No dia seguinte, fui com o Bruno a uma ginecologista. Consegui falar sobre o estupro, sem entrar em detalhes. Ela me orientou sobre as doenças sexualmente transmissíveis -aids, sífilis, hepatite B e gonorréia. Foi como levar outro soco. Chorei muito e, incentivada pelo Bruno, resolvi denunciar o estupro na Delegacia da Mulher. Fui bem atendida por uma delegada gentil, fiz o exame de corpo de delito. O ideal era não ter tomado banho antes, mas isso é quase impossível. Mesmo assim, o exame comprovou o estupro.
Ao chegar em casa, recebi uma visita da turma da faculdade, que soube do assalto. Mais de 20 pessoas encheram minha casa de alegria. Dormi mais aliviada e acordei com coragem para ir a uma delegacia normal fazer o retrato falado do agressor. Minha irmã mais velha, que deduziu o estupro sem eu ter contado, foi comigo. Que decepção. O lugar era desorganizado e tinha uma capitã que só estava preocupada em se livrar de mim, porque o policial que me atenderia tinha sido escalado para fazer o retrato falado dos assaltantes de um prédio de elite.
Resolvi me concentrar na minha saúde e procurei um infectologista. Meus primeiros exames de sangue deram negativo, mas o HIV leva de três a seis meses para aparecer. O médico sugeriu que eu iniciasse um tratamento com coquetéis. Nesse dia, minha mãe, vendo o meu nervosismo, começou a desconfiar do estupro. No fundo, ela já sabia, mas não perguntava nada. Meu pai só pensava em chamar os vizinhos para achar os assaltantes.
Fazia cinco dias que eu tinha pesadelos, não parava de pensar no estuprador. Senti que precisava retomar a vida, então resolvi ir à faculdade. Fui recebida com o maior carinho e desabafei com uma amiga, filha de um médico. Ela sugeriu que a gente fosse conversar com o pai dela. Pela primeira vez consegui contar tudo, nos mínimos detalhes. Ele me indicou outro infectologista, que me explicou que o ideal é tomar o coquetel até 24 horas após o estupro. Senão é melhor esperar os três meses que o vírus leva para aparecer. Além de conviver com essa dúvida, eu andava com medo de tudo: não conseguia sair sozinha nem ficar na casa dos meus pais, a poucos metros de onde havia sido estuprada. Fui morar na casa do Bruno.
Uma semana depois do estupro, minha mãe me ligou contando que um rapaz com as mesmas características tinha estuprado uma menina de 16 anos, virgem, no mesmo local. Indignada com o caso da menina, procurei uma pessoa do departamento de jornalismo da emissora em que trabalhava e dei uma entrevista, sem mostrar o rosto, encorajando outras vítimas a denunciar o estuprador e buscar ajuda médica. No dia seguinte, dei outro depoimento, com nome fictício, para a repórter de um jornal, que investigava uma onda de estupros na cidade. A sensação de estar ajudando outras vítimas me fez bem.
Quando a entrevista saiu no jornal, disse à minha mãe toda a verdade. Conversamos trancadas no quarto. Tirei um peso das costas e, a partir daí, pude compartilhar tudo com minha mãe. Ela contou ao meu pai. Ele só perguntou se eu era virgem no dia em que aconteceu e ficou aliviado ao saber que não. Até hoje ele chora quando vê um caso de estupro na TV.
Duas semanas depois, dois policiais me procuraram com a foto de um rapaz preso por estupro. Senti um calafrio: era ele. Soube que tinha 20 anos, era filho único de pais humildes e já tinha cometido um estupro há dois anos, mas foi solto por ser menor. Dessa vez seria diferente.
Com a intenção de me animar, muita gente vinha me falar dos sofrimentos que o estuprador estaria enfrentando na cadeia. No começo, eu pensava: 'Bem feito!'. Depois aquilo passou a me incomodar. Quando sentia raiva, procurava pensar em coisas positivas, para não alimentar o ódio. Não o perdoei, mas não desejo mal a ele. O que sinto é desprezo.
Depois de seis meses comecei a fazer terapia com um psicólogo, que durou dois anos. O tratamento me ajudou a recuperar o bom humor e a acreditar que poderia ter uma vida normal. Aos poucos, retomei a vida sexual. Logo depois do estupro, perguntei ao Bruno se ele ainda me desejava. Ele chorou comigo, disse que o nosso amor era superior a tudo. Dormimos juntos durante um mês sem fazer sexo. Uma noite, beijo daqui, beijo dali, deixei acontecer. Não foi como antes, me senti invadida, lembrei do estupro, mas procurava me concentrar no Bruno, no nosso amor. Mesmo assim, as primeiras vezes foram difíceis. Demorei mais de um ano para voltar a ter orgasmo. A dúvida em relação ao HIV também foi um tormento. Durante um ano, tive de repetir o exame a cada dois meses.
O que mais me ajudou, além da terapia e das pessoas iluminadas com quem contei, foi ter agido. Ter denunciado, dado entrevistas, reconhecido o estuprador, tudo isso me deu força para não me sentir a eterna vítima. Eu me recusei a ter pena de mim mesma. Hoje, só penso no que aconteceu quando vejo uma cena de estupro no cinema. Mas é como lembrar de um pesadelo que passou.
Em 2002, o estuprador foi condenado a 20 anos por quatro estupros -outras três moças o denunciaram. Uma delas contraiu o HIV. Achei a pena curta por tudo o que ele fez. Hoje há uma discussão em torno do aborto em casos de estupro. Acho que a mulher deve ter sempre esse direito. Se eu tivesse engravidado, como teria um filho de alguém que me fez tão mal?
Apesar do sofrimento, esse pesadelo me despertou para uma realidade distante do meu mundo: doentes terminais, saúde pública precária, polícia despreparada. Acho que fiquei mais madura, mais sensível. Resolvi estudar jornalismo e faço parte de um grupo de apoio a crianças órfãs soropositivas. Depois de dois anos, meu namoro com o Bruno terminou, mas seremos eternamente amigos. Fui morar sozinha e logo conheci o Ricardo*, com quem vivo outra história de amor. Acho que nada é por acaso, todas as dores são provas. Espero que a minha história ajude as mulheres que passaram pelo que passei a acreditar que é possível voltar a ser feliz."

http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML970807-1749-2,00.html








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